A Teologia foi gerada a partir da experiência?

À pergunta se a experiência pode exercer algum papel no conhecimento humano, a filosofia contemporânea sustenta, entre outras respostas, uma hipótese radical: o conhecimento é fundado na experiência, é esta o que torna aquele possível, e o que deveríamos de fato perguntar com suspeição é se alguma modalidade de conhecimento prescinde, afinal de contas, do nível experiencial. LEIA MAIS...
Refiro-me a escolas filosóficas como a da embodied cognition (cognição incorporada), que tem sido desenvolvida por autores como Samuel Todes, Francisco Varela e Charles Taylor e remonta, como seus precursores, a Wittgenstein (“o último”), Heidegger e Merleau-Ponty.
            O fenomenólogo francês não economizava ao traçar o potencial transformador que ele julgava haver na nova perspectiva epistemológica: “A verdade não ‘habita’ apenas o ‘homem interior’, ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece”.[1] À semelhança de Wittgenstein, é Santo Agostinho quem, em diferentes momentos, Merleau-Ponty elege como seu antípoda, como fundador e representante máximo da grande tradição filosófica que enxerga o homem como uma entidade metafisicamente impermeável ou, em termos de atividade cognitiva, um receptáculo de imagens extraídas do mundo.
            Charles Taylor[2] chama a essa tradiçãofundacionalismo, o qual se basearia numa visão do homem como um circuito de tipo I/O, que funciona ao modo de recebimento de inputs e emissão de outputs: os dados que “entram” no indivíduo servem de fundações uns para os outros, conforme o conhecimento vai sendo construído pelo sujeito, sempre de maneira hierárquica. No pensamento recente, a suposição fundacionalista foi levada ao seu limite com a tese da Inteligência Artificial, que procura explicar a natureza e a operação da mente humana em analogia com as de uma máquina de computador. É claro que os defensores desse tipo de filosofia da mente encontram inspiração nos baluartes do racionalismo moderno, como Newton na física e Descartes na filosofia. Não por acaso, ser chamado de cartesiano hoje é quase unanimemente – pois, afinal, há que se considerar a exceção dos simpáticos planos feitos para abrigar sistemas de coordenadas, os quais não podem falar – considerado uma ofensa. Mas, como se sabe, o cogito (de cogito ergo sum, ou “penso, logo existo”: o pensamento privado e consciente como único dado irrefutável, e, por causa disso, como fundamento da racionalidade e ponto de partida para o conhecimento de todas as coisas) não é exclusivamente cartesiano, mas já se encontra em Agostinho. Neste aspecto, da Patrística para a modernidade teria havido mais uma mudança de postura do que de perspectiva: o sujeito pensante, o autor do cogito, abandona as confissões que endereçava a Deus para se lançar a meditações (o mais das vezes, oferecidas à rainha). Mas a nobre atividade do conhecimento é, em ambos os casos, associada exclusivamente à alma, sem contato com o mundo e cuja relação com o corpo é antes um problema – ora filosófico, ora até mesmo moral –, e não uma solução.
Uma série de fatores, notadamente o ímpeto de tornar-se independente da devoção religiosa, faz com que o cogito moderno se diferencie da filosofia do sujeito cristã, ao ponto de uma ideologia do individualismo ter sido possível aos nossos pais, mas não aos nossos avós intelectuais.[3] Mas o fato é que a filosofia jesuítica a que René Descartes se opôs diferenciava-se da epistemologia agostiniana, não por um desacordo grave quanto ao estatuto metafísico do homem, mas apenas na medida em que São Tomás de Aquino, o teólogo modelar para o período, dependia, em sua metafísica, de Aristóteles, ao passo que Santo Agostinho adentrara a filosofia por intermédio de neoplatônicos como Plotino; ainda assim, o Aquinate prestava ao bispo de Hipona tanta ou mais reverência intelectual do que ao próprio Estagirita. Grosso modo, Platão (ao menos em uma de suas fases) pensara o conhecimento filosófico genuíno como sendo uma contemplação de Ideias ou Formas puras das quais os objetos particulares meramente participariam, ao passo que Aristóteles caracterizara a atividade intelectual como uma apreensão dos objetos individuais enquanto compostos de matéria e forma (que, deste modo, se oferecem à mente humana em um formato tal que esta possa abrigá-los). Semelhantemente – fazendo, também aqui, um resumo grosseiro –, Santo Agostinho privilegiou a comunicação íntima entre o homem interior e Deus, num ato de contemplação, enquanto Santo Tomás privilegiou a revelação divina como aporte necessário à realização da natureza do ser humano, que é conhecer; ambos, no entanto, entendendo o conhecimento de Deus como culminação da atividade que melhor define o ser humano, ou seja, a intelecção. Descartes intentou conceber uma racionalidade que independesse da Revelação, nisto se opondo tanto ao tomismo como ao agostinianismo, mas, de todo modo, tratava-se uma racionalidade que definiria o homem como uma mente espiritual a lidar com informações recebidas privativamente, nisto guardando parentesco tanto com a matriz platônico-agostiniana como com a matriz aristotélico-tomista, e principalmente com a primeira.
O que faz com que “cartesianismo” consista, atualmente, em uma categoria acusatória, e as concepções fundacionalistas do conhecimento pareçam tão escandalosamente redutoras, é o rico intercâmbio entre filosofia e ciências humanas.[4]Pensando a partir do desenvolvimento histórico da espécie humana, por exemplo, podemos saber que um indivíduo não acessa a atitude religiosa como ao corolário de uma dedução intelectual, de uma ponderação racional, mas o nosso raciocínio é religioso por natureza. Sob o novo paradigma de pesquisa, passa a haver uma pergunta anterior à própria descrição do procedimento intelectivo, a saber: como, no desenvolvimento da espécie, o homem se tornou capaz de conhecimento, em especial, de conhecimento consciente? O que implica novas questões, como: que tipo de sofisticação, se alguma, é preciso fazer na definição clássica do homem como animal racional?
Certamente os primeiros indícios de qual deve ser o caminho para explorar tais perguntas advirão de uma análise daquilo que atualmente podemos constatar de maneira imediata, isto é, de quais são os resultados da ação do homem, do que diferencia um ambiente habitado exclusivamente por outras espécies e um ambiente marcado pela ação humana – uma constatação já indicada com bastante perspicácia por César Moisés ao falar em “um mundo humano, leia-se, cultural”.[5] A equivalência não é gratuita, mas reverbera o fato de as nossas instituições públicas serem permeadas de simbolismos e que tendamos a consolidar determinadas práticas na forma de tradições. Está incluída neste traço do mundo humano a nossa propensão a criar rituais e racionalizar crenças.
O contraste entre o estágio vigente, em que a humanidade é marcada pela racionalidade ou cultura, e os estágios evolucionários anteriores, em que a nossa raça se caracterizava pela violência ou barbárie, é o espanto motivador de boa soma de reflexão filosófica. Embora a psicanálise, com Freud, tenha fornecido uma hipótese bastante convincente e com grande potencial explicativo, isto é, o assassinato fundador da cultura, a que remeteriam várias inclinações psicológicas, por exemplo o complexo de Édipo (caso em que o assassinato fundador assumiria o signo de um parricídio), resta aqui um problema filosófico: que tipo de assassinato poderia ser este, que não porta nenhum traço de racionalidade (porque a pura barbárie primitiva é suficiente para gerá-lo), mas que marca o início da história racional da humanidade? Que evento poderia ser, ao mesmo tempo, absolutamente bárbaro e ponto de partida para o império da razão?
            Penso que a resposta pode ser derivada da recente teoria antropológica de René Girard: o evento fundador da cultura não é qualquer assassinato, mas um sacrifício. Este é causado por um desejo imponderado de violência, irracionalmente atribuído, pela comunidade que elegera o bode expiatório prestes a ser imolado, a uma divindade ensandecida; mas, uma vez executado o sacrifício, e satisfeito o desejo de violência da comunidade, o “terrível” bode expiatório torna-se também fonte de paz, ambivalência que lhe confere a aura do sagrado e que, deste modo, inaugura um expediente ritualístico para que a comunidade consiga resolver os seus conflitos: rememorar o sacrifício daquele indivíduo. Fundam-se, assim, no mesmo evento, a religião e a cultura.[6]
            É no interior de uma tal conjuntura que o homem pode viver a “experiência absoluta da realidade”, característica da nossa espécie, conforme referido por Roberlei Panasiewicz.[7] É de maneira experiencial que o homem se torna um animal de razão. Se isso está correto, podemos agora compreender de que maneira religião, ciência, devoção e trabalho podem derivar de uma fonte comum, como aludido por Carvalho.[8] Mas, além disso, podemos situar essas quatro atividades humanas (e outras tantas), introduzindo agora o jargão teológico, no mesmo plano redentivo soberanamente guiado por Deus.

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